As madrugadas silenciosas e o grande perigo!


Era uma feia noite de verão carioca. A temperatura, alta e cheia de umidade de um jeito que só o Rio pode proporcionar, gerava uma confusão quanto à seriedade da Lua, que mais parecia a bola de fogo incandecente que nos premia diariamente com o desejo da morte rápida. Nosso herói, Lucius, encontrava-se trancado em seu quarto, fechado em pensamentos inconclusivos sobre a seriedade da raça humana: “como eu queria ser um personagem de Tíbia” – Clicava de um lado para o outro, rabiscando um inglês cuja dialética só ele era capaz de entender. “Yu vai die!!!!!”.



Lucius vinha de grandes batalhas na vida real. Derrotara monstros alados, esqueletos voadores que hipnotizavam com seu canto, terríveis criaturas capazes de saltar mais alto que o imaginável, tudo isso em nome de seu fiel escudeiro: Filious, que insistia em chamar as vítimas de Lucius como baratas, cigarras e gafanhotos.


“Monstros! São monstros!!!”


“Ok, são monstros, vou tomar meu café”.


Filious era tudo o que Lucius não era e vice-versa. Nosso herói era destemido, bravo, forte e com espírito aventureiro, enquanto que Filious fechava-se na leitura, estudo, piadas e a necessidade de que outra pessoa matasse suas próprias baratas. “MONSTROS!!!” – Monstros. O que não sabiam, entretanto, é que o dia derradeiro da grande batalha estava próximo, um perigo que somente eles, juntos, seriam capazes de confrontar.



A madrugada adentrara com o calor sufocante. Ventiladores a postos, Filious e Lucius encontravam-se cada qual em seu quarto, refletindo e pensando sobre as vertentes da vida (Lucius pensava em como dizer “seu char é patético, eu sou muito mais forte” em inglês para um polonês e Filius escrevia um perfil sobre si mesmo em terceira pessoa). Entre uma rabiscada e outra – “Filious é apaixonado pelas vertentes e sonha ser levado a sério” – nosso quase-herói decidiu que era o momento para uma pausa refrescante. Caminhou lentamente até a cozinha, dando uma olhadela para o relógio redondo onde os números são representados por frutas; marcava que era a hora do tomate – 4 da manhã. Abriu a geladeira, apoiou-se na porta, refletiu por dez segundos, esqueceu o motivo de estar ali e fechou-a, lembrando logo em seguida que queria água. “Ok, agora tenho que esperar pra abrir de novo”.


Foi então que tudo aconteceu, de forma rápida e assustadora. Com a garrafa na mão e o copo na outra, um barulho que fez os poucos fios de suas nádegas ficarem de pé.


“CABRANCK!”


Filious virou-se tão rapidamente que a água em copo seguiu sua inércia, estatelando-se no chão com um baque seco, ou no caso, molhado. Observava o corredor escuro que culminava na porta de entrada da sala, o exato ponto onde se dera a origem do barulho. Paralisado pelo medo, ficou naquela posição ridícula, sem camisa e com um short que já perdera o elástico e mostrava metade de sua cueca, encarando a porta como se a qualquer momento fosse ser derrubada por um gladiador assassino. Um finíssimo flato escapuliu por entre seu corpo travado, fazendo o short descer um pouco mais e empestiando o ambiente como se a morte anunciasse sua presença. Foi a motivação necessária para que Filious saísse correndo até o encontro de seu herói.

“Rápido… Porta… Barulho… Peidei… Tem alguém… Fora” – Ele tentava explicar, ofegante, com a mão pressionando os rins.


“Calma! Fala que nem homem, que que aconteceu?” – Lucius já imaginava o próximo monstro que seria incubido a tirar a vida.


“TEM ALGUÉM LÁ FORA!!! ALGUÉM TENTOU ABRIR A PORTA DA SALA!”


Lucius colocou-se de pé em menos de meio segundo, mas ficou tonto pelo movimento e sentou-se de novo. Ok, agora sim, levantou devagar e foi, a passos de ninja, até a sala espectralmente escura, iluminada somente pelas pequenas faixas de luar que entravam pela janela de vidro fechada. Filious vinha atrás, num movimento que mais parecia estar tentando soldar as duas sombras em uma.


Encaravam a porta num silêncio mortífero, banhados pela sombra.


“Não fique de frente à porta, Filious, ou ele pode atirar lá de fora e te atingir”.


“O que… Você acha que… É?”


“Estamos no Rio de Janeiro, só pode ser alguém tentando arrombar a casa, nos matar e roubar tudo o que temos”.


“Mas não temos nada!”


“Fale por você, meu char no incrível mundo de Tíbia vale uma fortuna e a senha está salva no PC”.


“…”


“Rápido Filious, proteja as crianças!”


“Não tem crianças na nossa casa, Lucius”


“Então solte os cães para cima do invasor!”


“Se você tá falando da mamãe e da vovó eu vou… Te acertar de longe com um graveto”.


Esperaram por novos movimentos, que não vieram. Decidiram então que era a hora de agir, indo pela lateral da casa e espiando por cima do muro para ver se alguém encontrava-se do lado de fora, preparando um ataque que encerraria suas vidas para sempre.


Prosseguiram pelo corredor, atravessando a cozinha.


“Porra! Tem alguma coisa podre na geladeira!”


“É… É… Deve ser”.


Saíram pela lateral, enxergando à frente um enorme corredor do lado de fora da residência. Pequenas árvores dançavam lentamente à direita, projetando sombras ainda mais escuras naquele ambiente que parecia não ter fim. O medo já tinha atingido a parte testicular de Filious, que travou mais uma vez perante o pânico de enxergar o assassino ao final do corredor.


“Vai você Lucius. Se alguém tiver que morrer, o outro precisa viver para contar a história”.


Nosso herói fungou e resmungou algo como “vadia… E eu sou o caçula”, mas seguiu em frente, numa posição em que parecia estar empunhando um grande escudo e uma espada. Caminhou a passos lentos, de modo a não fazer barulho e espantar o assassino. Em sua mente, apenas um pensamento: “Ao avistá-lo, pule e inutilize sua arma. Pule e inutilize sua arma!“


Filious observava de longe o bravo herói. Seus dois joelhos tremiam descompassadamente, enquanto seu short descia cada vez mais. Ele sabia que aquele era o momento da verdade, a hora em que seu bravo herói poderia morrer. Sabia que deveria estar lá, junto, lutando contra o vilão, mas seus joelhos convenciam-no do contrário. Por isso, continuou a observar enquanto Lucius chegava, finalmente, até o último passo que poderia dar antes de ficar visível para o assassino.


Foram vinte segundos em que Filious observou Lucius respirar em altíssima velocidade, criando coragem para o que iria fazer. Os batimentos cardíacos de Filious estavam assustadoramente rápidos, uma gota de suor percorria sua têmpora, descendo pela bochecha. Foi então, naquela fração de segundo, que Lucius agiu, pulando o muro o mais rápido que podia, ao mesmo tempo em que berrava:


“YOU VAI DIE!!!!!!!”


Filious não podia ver mais nada, não conseguia sentir mais nada, apenas o silêncio mortal que acompanhava o mistério que envolvia o ataque de Lucius. Seus joelhos cederam, ele caiu e ficou numa posição de prece, encarando fixamente o ponto em que poderia ter visto o irmão pela última vez.



“Vamos Lucius, acaba com ele, volta com vida! Volta com vida!”


Segundos passaram, até que o movimento surgiu. Um homem inclinava-se de volta pelo muro, parecendo exausto. A escuridão tornava impossível distinguir quem era, mas trazia algo nas mãos, algo do tamanho de um braço humano dobrado. O coração de Filious disparou mais ainda, colocando-no de pé, pronto para correr o mais rápido que suas pernas eram capazes de suportar. O homem desconhecido veio em sua direção, devagar, segurando nos braços o que poderia ser o último vestígio de seu irmão.


Uma faixa de luz iluminou o rosto do homem. Era Lucius. Lucius estava vivo. Vinha caminhando ofegante, com uma expressão que misturava o triunfo e o alívio em sua face. Caminhou para mais perto, ainda carregando aquele mistério nos braços.


Finalmente se encararam, ambos banhados pelo suor, pelo pânico e pelo alívio, reflexos cotidianos da cidade grande. Lucius chegou muito próximo, ao ponto em que Filious encarou o pacote que provavelmente estava repleto de sangue nas mãos de seu irmão. Ao identificar o que era, seu rosto abriu uma enorme expressão de susto. Lucius, ofegante, só pôde explicar:


“O jornal de amanhã. O entregador acertou a porta”.


“Ah…” – Disse. E foram dormir.

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